O sonho de Euronymous por trás da Deathlike Silence Productions


Goste ou não, Øystein Aarseth era um visionário. Por mais que suas atitudes fossem questionáveis, o músico, mundialmente conhecido como Euronymous, tinha um desejo: conectar bandas de todo o globo que tocassem, no seu entendimento, música obscura. Nascia assim a Deathlike Silence Productions.

O COMEÇO

A Deathlike Silence ganhou vida em 1988 logo após o lançamento do EP Deathcrush, do Mayhem. No começo, Euronymous e Jan Axel “Hellhammer” Blomberg tocavam o selo em parceria com a holandesa DURECO, que prensava os discos. A parceria durou de 1989 até 1994.

A ideia de Aarseth era que a DSP funcionasse como um grande colaborativo de músicos do underground buscando a propagação de bandas sem a necessidade de uma major label envolvida e que se mantesse na direcionamento musical das mesmas. A Deathlike Silence é apontada como a primeira gravadora independente do mundo.

O próximo passo para a expansão da DSP por Euronymous se deu nos primeiros anos da década de 1990, com a abertura da infame loja Helvete junto com Stian “Occultus” Johansen e Geir “Thrasher” Bratteli. O espaço era dedicado a encontro de apreciadores de som extremo e da venda de discos, demotapes, camisetas e fanzines.

FUNCIONAMENTO

Não é novidade para ninguém que em um ambiente dominado por extremistas de direita, Euronymous era um socialista convicto e a ideologia de funcionamento da DSP tinha raízes nessa corrente política.

Em cartas trocadas com seus contatos por todo o mundo, é possível perceber pelas palavras de Aarseth a importância da DSP funcionar internamente dentro da cena black metal favorecendo músicos, numa clara referência ao famoso lema socialista que diz “Se a classe operária tudo produz, a ela tudo pertence”.

Algumas dessas cartas foram digitalizadas e postadas na internet. O trecho abaixo, retirado de uma carta endereçada a Pocho Metallica, elucida como era conduzida a Deathlike Silence:

Agora eu tenho um grande pedido para você, se você conhece alguma banda de Death Metal da Argentina, Uruguai, Bolívia, Paraguai ou da Venezuela, você poderia, por favor, dizer a eles para escreverem ou darem-me os seus endereços? Eu estou morrendo de vontade de tocar com as pessoas de lá! Você acha que haveria alguma chance de o MAYHEM tocar na Argentina um dia? Eu tenho um sonho do caralho de ir tocar na América do Sul! Nós conseguimos grandes contatos na Colômbia agora, ao final desta carta eu lhe darei um par de endereços! Eu suponho que você se lembra que eu tenho minha própria gravadora (DEATHLIKE SILENCE), bem, eu estou agora procurando por distribuidores pelo mundo inteiro, e eu queria saber se você estava interessado em me ajudar! Todos que venderem pelo menos 10 cópias (ou preferivelmente mais) de um álbum, receberão uma cópia grátis, mas eles podem vendê-la pelo tanto que quiserem. Se você tiver como se juntar a isso, por favor escreva e diga-me quantas cópias você quer para que eu as envie para você quando estiverem prontas. Você é claro paga quando vendê-las!

Aparentemente não havia perspectiva de lucro dentro da DSP. Era claro desde então que, no jargão popular, tudo seria feito “no amor”. Eu produzo, vocês distribuem e fica tudo entre nós. Não havia um conceito mercadológico para fazer da Deathlike Silence a grande multinacional underground que Euronymous queria.

De fato o selo não era bem sucedido comercialmente. Todavia, o enorme esforço empregado por Euronymous na sua manutenção corrobora que, mais que uma gravadora visando lucros, a DSP era, na verdade, uma paixão e um sonho inalcançável. Como pode ser lido neste trecho de uma entrevista de 1992:

Estas pessoas obviamente nunca tentaram viver por conta própria e nunca sentiram a dor de não ser capazes de comer porque usam todo o seu dinheiro em tarifas postais. Agora, nós temos sido escravos do underground por 8 anos [tempo contado desde a fundação do Mayhem em 1984]. Onde nós estamos hoje? Nós não temos nenhum dinheiro, e, às vezes, nem mesmo o que comer. Nosso equipamento é muito fodido, uma merda ou inexistente. Nós não temos lugares decentes para morar. Após 8 anos de existência nós quebramos.

No entanto, Euronymous conseguiu um contrato junto à Voices Of Wonders Records — a partir do terceiro lançamento — para a distribuição dos discos da Deathlike Silence Productions que, mesmo aos trancos e barrancos, lançou alguns títulos em pequenas tiragens de no máximo mil cópias.

LANÇAMENTOS

Com o singelo slogan de “No fun, no core, no mosh and no trends”, a DSP ainda exibia a imagem de algum “desafeto” debaixo do carimbo de “proibido”. O mais famoso de todos é Anton LeVay, fundador da Igreja de Satã ferozmente odiado por Euronymous. Além disso, os lançamentos vinham com o prefixo “Anti-Mosh”.

Ao todo foram nove discos das bandas MercilessBurzum, Mayhem, Abruptum, Sigh e Enslaved.

Anti-Mosh 001: Merciless — The Awakening (1990)

Fundado em 1986 na Suécia por Karlén (baixo), Stipen (bateria) Erik (guitarra) e Rogga (vocal), o Merciless remava contra a corrente do death metal local, mais técnico e polido, e apostava em algo mais primitivo e muito próximo do black metal.

Gravado no ano de 1989 mas lançado somente em fevereiro de 1990, o disco teve prensagem limitada em apenas mil cópias e hoje é objeto de desejo por colecionadores de metal extremo.

Anti-Mosh 002: Burzum — Burzum (1992)

O “garoto prodígio” Varg Vikerness deixou Euronymous de queixo caído com sua demo tape. Convencido de que aquele som era perfeito para sua gravadora — e contando com o dinheiro vindo de Vikerness — a DSP produziu orgulhosamente o debut do Burzum, que em março foi lançado primeiramente em CD e em maio foi prensado em vinil, totalizando 500 cópias.

Certo de que tinha em mãos algo grandioso, Euronymous fez questão de participar ativamente de todo o processo, sendo creditado com um solo na música War e tocando gongo na faixa Dungeons of Darkness.

Os problemas entre Euronymous e Varg começaram aí, quando Aarseth alterou sem consulta prévia o nome de duas canções no álbum para Ea, Lord Of The Deeps e Black Spell Of Destruction, as quais originalmente chamavam-se Ea, Lord Of The Depths e Spell Of Destruction.

Anti-Mosh 003: Mayhem — Deathcrush (1993)

O sucesso do álbum de estreia do Burzum deu um pequeno fôlego financeiro para a Deathlike Silence, que em 1993 conseguiu lançar mais três discos. O primeiro foi a reprensagem em mil cópias do EP de estreia do Mayhem lançado originalmente em 1987.

>> Sound Classic: Deathcrush - Mayhem

Neste relançamento, a banda pôde enfim dar à capa a cor de tom vermelho que eles queriam. Na primeira versão, lançada pela Posercorpse Music, por conta de um problema na impressão, a capa era rosada.

Anti-Mosh 004: Abruptum — Obscuritatem Advoco Amplectére Me (1993)

Mais uma banda sueca no cast da Deathlike Silence, o Abruptum era, talvez, o som mais perturbador do selo naquela época; sendo classificado por Euronymous como “a audácia essência do puro mal”.

Formado por IT (vocal — R.I.P 2017) e Evil (guitarra, bateria e barulhos), o Abruptum executou neste álbum um doentio black/dark ambient/noise dividido em duas peças de 25 minutos cada para seres igualmente doentios.

Assim como no lançamentos dos conterrâneos do Merciless, o disco do Abruptum teve uma prensagem de mil cópias.

Anti-Mosh 005: Burzum — Aske (1993)

Euronymous acreditava que o incêndio da igreja Fantoft em junho de 1992 merecia uma “comemoração” e um “incentivo” para a prática incendiária que tomou conta da Noruega no início dos anos 1990.

Para tal, a DSP recorreu a Vikerness e seu EP para manter a cena movimentava. Trazendo na capa a imagem da tradicional igreja em cinzas — daí o nome Aske — o lançamento teve tiragem de mil cópias e vinha com palitos de fósforo como brinde.

Anti-Mosh 006: Mayhem — De Mysteriis Dom Sathanas (1994)

O tão aguardado álbum de estreia de Euronymous só viu a luz no ano seguinte após o seu assassinato em agosto de 1993 — acontecimentos macabros atrasaram o seu lançamento. Àquela altura, Vikerness já era baixista do Mayhem.

E em mais uma coincidência obscura que ronda o Mayhem, assassino e assassinado — e cúmplice do assassino, já que Snorre Ruch também participou das gravações do disco — tocam no mesmo álbum.

De Mysteriis Dom Sathanas foi lançado no dia 24 de maio de 1994 e, obviamente, foi dedicado a Euronymous. Esse foi o último álbum a sair pela Deathlike Silence Productions.

Anti-Mosh 007: Sigh — Scorn Defeat (1993)

Euronymous não estava mentindo quando dizia que queria fazer da Deathlike Silence um selo que conectasse países distantes um do outro. Com isso, a gravadora situada em Oslo, na Noruega, assinou com o Sigh, do Japão.

A banda asiática formada por Mirai (vocal, baixo e teclado), Shinichi (guitarra) e Satoshi (baixo) praticava um black metal que, diferente dos noruegueses, primava pelo som mais “cristalino” e apostava nos climas executados com teclado.

O Sigh, porém, foi vítima da morte de Euronymous. Como foi lançado em dezembro de 1993, quatro meses após o assassinato de Aarseth, o disco teve uma péssima distribuição e sua segunda edição lançada em 1994 é um item raríssimo de ser encontrado.

Anti-Mosh 008: Enslaved — Vikingligr Veldi (1994)

Formado por Grutle Kjellson (vocal e baixo), Ivar Bjornson (guitarra, piano e eletrônicos) e Trym Torson (bateria e percussão), o Enslaved era apontada como a banda mais técnica no cast da Deathlike Silence.

Executando um black metal com um pé no viking e prog, os noruegueses apostaram em canções longas no seu álbum de estreia. A música mais curta tem seis minutos e as demais ultrapassam a barreira dos 10 minutos.

Lançado no dia 22 de fevereiro de 1994, o álbum foi dedicado a Euronymous.

Anti-Mosh 009: Abruptum — In Umbra Malitiae Ambulabo, in Aeternum in Triumpho Tenebraum (1994)

O penúltimo lançamento da DSP foi mais um ato caótico do duo sueco Abruptum. Contendo apenas uma canção com 1 hora de duração, o álbum manteve o nível do lançamento anterior de IT e Evil.

Lançado no dia 1º de abril, o disco preparou de forma digna o terreno para o último e derradeiro material da Deathlike Silence Productions: o clássico De Mysteriis Dom Sathanas.

OUTROS PLANOS

Apesar do esforço diário de 15 horas de trabalho, a Deathlike Silence não alcançou o voo planejado por Euronymous quando fundou o selo em 1988. Ainda em vida, Aarseth queria expandir os tentáculos da gravadora assinando com as bandas Rotting Christ (Grécia), Masacre (Colômbia) e Hadez (Peru).

A primeira tentativa de elevar o trabalho da DSP para escala mundial foi feito com a Suécia, o país vizinho. Em cartas, Euronymous pedia a ajuda de Morgan Håkansson, do Marduk, para que ele atuasse como uma espécie de “gerente” do braço sueco da gravadora.

Em 1992, o Darkthrone procurou a Deathlike Silence para o lançamento do seu segundo disco chamado A Blaze In The Northern Sky. Na ocasião, a Peaceville Records, gravadora da banda, não aceitou de imediato a mudança do death metal para o black metal e ficou em dúvida com relação ao álbum.

A última carta na manga da Deathlike Silence era o lançamento do debut In Absentia Christi, da banda italiana de doom/gothic metal Monumentum. No entanto, o assassinato de Euronymous inviabilizou a formalização do contrato e da gravação do álbum.

Após a morte de Euronymous, a Deathlike Silence Productions e a Helvete foram enterradas junto com ele. A então parceira Voices Of Wonder Records assumiu o catálogo da DSP, mas pouco fez pelo selo. Na segunda metade dos anos 1990, a Voices trocou o metal pela música dance e eletrônica.

LEGADO

Considerado um fiasco mercadológico a DSP foi algo muito além do que uma empresa visando lucro. A louvável ideia de criar o colaborativo de bandas do underground mundial deve ser analisada, acredito, de forma passional.

Todo o esforço empregado por Euronymous com seu trabalho tanto na gravadora quanto na loja Helvete abriu as portas para inúmeras bandas — norueguesas ou não — que caminhavam e ainda caminham na obscuridade. Era um período de descobertas e aprendizados para todos os envolvidos na cena.

Se queria ser um rockstar ou se era um poser, isto é uma questão pessoal. No entanto, não reconhecer o trabalho da Deathlike Silcence Productions em detrimento da figura de Øystein Aarseth é desmerecer o trabalho de um visionário que, mesmo sem o conhecimento necessário, revolucionou o cenário mundial de música extrema.

* Texto originalmente publicado no meu perfil no Medium em abril/2019

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